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Comunidades do entorno: um conceito a ser revisitado

*Por Vitor Hugo Neia, diretor-geral da Fundação Grupo Volkswagen

A ideia de entorno traz em si uma noção de separação. Ela diz respeito a algo que nos rodeia, que nos cerca, que está ao nosso redor. Não por acaso, sua origem vem do verbo entornar, ou seja, transbordar, derramar, despejar algo para fora. O entorno está à nossa volta, mas está além de nós. Há algum tempo, me pego refletindo sobre o significado desse substantivo, especialmente quando acompanhado de um conceito bastante presente nas discussões sobre responsabilidade social corporativa e, mais recentemente, em suas conexões com a agenda ESG: as comunidades do entorno.

São muitos os usos, seja na literatura, seja em publicações do setor. Em suas “Boas práticas para uma agenda ESG nas organizações”, o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) utiliza esse conceito para se referir às populações e regiões localizadas ao redor das operações de uma empresa. E isso se repete em dezenas de relatórios de atividades de companhias de todos os setores, em textos oficiais, em artigos acadêmicos, na imprensa e em eventos de sustentabilidade.

À primeira vista, não podemos desconsiderar a finalidade didática, por vezes geográfica, dessa ideia de entorno, evocada para ilustrar aquilo que está no chamado além-muro das empresas. Esse conceito também guarda uma relação bastante próxima com o que a literatura denomina de externalidade. Utilizando como referência a mesma publicação do IBGC, externalidade se refere aos resultados das ações e decisões de uma organização sobre terceiros, de modo que a noção de comunidade do entorno serve a essa distinção. Contudo, como escreveu José Saramago, a palavra não mostra, ela disfarça. E é justamente o que essa expressão disfarça que tem me incomodado nos últimos tempos.

Em quase duas décadas de experiência no terceiro setor, não me recordo de uma organização social se referir à comunidade na qual ela está como “comunidade do entorno”. E isso também vale para nós mesmos. Quem se refere ao seu bairro, à sua comunidade, como o “bairro do meu entorno”? Talvez porque não faça sentido para uma organização social se ver afastada da coletividade à qual ela pertence, do mesmo modo que não nos vemos meramente cercados por nossos bairros, mas sim como parte deles. Então, o que acontece com as empresas?

Por um lado, é grande a parcela da população que acredita que não devemos limitar o papel das companhias à geração de lucro aos acionistas. De acordo com o relatório “Divulgações de ESG no Ibovespa” , da PwC, as pessoas estão atentas ao retorno dos impactos das empresas para a sociedade e o meio ambiente. Além disso, no Brasil, os grupos empresariais são considerados as instituições mais confiáveis pela população, à frente de organizações não governamentais, mídia e governo, segundo a Edelman. Assim, sustentabilidade corporativa passou a ser uma demanda social e um diferencial estratégico.

No entanto, é preciso reconhecer que vivemos um ponto de inflexão para a agenda da sustentabilidade. Após o ano mais quente já registrado no planeta, vemos o negacionismo climático ganhando força e a principal potência econômica anunciando sua retirada do Acordo de Paris. Ao mesmo tempo, ao sabor dos ventos políticos, grandes corporações estão abandonando as pautas de Diversidade, Equidade e Inclusão que até pouco tempo atrás juravam ? e propagandeavam ? abraçar, escancarando, na prática, o que significa socialwashing. E os exemplos se multiplicam.

Por tudo isso, é chegada a hora das organizações verdadeiramente comprometidas com o desenvolvimento sustentável posicionarem-se de forma contundente em prol de uma agenda inclusiva, ambientalmente responsável e socialmente justa. Nesse sentido, precisamos encarar o fato de que os conceitos que adotamos também refletem, ou ocultam, posicionamentos e intenções. É certo que a convivência entre uma empresa e o território ao qual ela pertence é permeada por tensões e relações de poder, na maior parte das vezes desproporcionais entre si. Negar isso seria apagar as disputas, lugares de fala e contradições que caracterizam o relacionamento entre grupos econômicos e comunidades locais, com seus ganhos e perdas, retornos e riscos.

Ao se instalar em uma localidade, as empresas geram emprego, renda e oportunidades de negócio, são capazes de influenciar governos a investir em infraestrutura e equipamentos públicos, atraem investimentos e contribuem para o desenvolvimento local. Porém, ao desconsiderarem as dinâmicas e características das comunidades, elas podem ocasionar prejuízos ambientais, deslocar populações, incentivar ocupações e moradias precárias e reforçar múltiplas formas de exclusão social, entre outros impactos negativos que certamente também serão prejudiciais ao próprio negócio. Em contrapartida, essa mesma comunidade também tem muitas contribuições a dar às empresas, não apenas em termos de mão-de-obra, mas também de saberes e conhecimentos sobre a realidade local, participação em agendas de diversidade e inclusão, capacidade de mobilização e articulação, e assim por diante. É a aceitação e o reconhecimento dessa interdependência que garantem a “licença social para operar”.

Portanto, é dado o momento das companhias se entenderem não mais como ilhas autônomas, mas sim como pertencentes às comunidades nas quais elas operam, com seus potenciais, demandas, oportunidades e desafios. Valorizando uma alteridade que assume o outro, ainda que diferente, como parte de si mesmo. Ao revisitarmos o conceito de entorno quando olhamos para esses tecidos sociais tão complexos e únicos, o que parece um simples exercício semântico subverte as oposições que existem entre “dentro e fora”, “empresa e entorno”, “eles e nós”. Somente assim as empresas serão genuinamente inclusivas, diversas e, acima de tudo, responsáveis por aquilo que fazem ou deixam de fazer em suas próprias comunidades ? não mais vistas com estranhamento, à distância, mas respeitadas e consideradas. Em tempos de muros que se erguem, eis minha provocação: o entorno somos nós.


Texto originalmente publicado no portal Observatório do Terceiro Setor: https://observatorio3setor.org.br/comunidades-do-entorno-um-conceito-a-ser-revisitado/