Conversa Social: “A colaboração entre setores é o que tem apresentado bons resultados para a mobilidade urbana”

Elisabete França, Superintendente da Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET-SP), destaca a união entre setores para melhorar a mobilidade na capital paulista
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Elisabete França, Superintendente de Planejamento e Projetos da Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET-SP)

A mobilidade urbana tem se tornado, cada vez mais, pauta de intenso debate na sociedade brasileira. Em São Paulo (SP), maior cidade do País, o tema é recorrente nas discussões sobre políticas públicas. Com mais de 12 milhões de habitantes, o deslocamento por diferentes sistemas de transporte na capital paulista ainda é um grande desafio.

Soluções como corredores exclusivos de ônibus, ciclovias e ciclofaixas, veículos compartilhados, integração intermodais e expansão da malha ferroviária e metroviária objetivam desafogar as principais vias paulistanas. Mesmo assim, o tempo médio de deslocamento diário gasto pela população é de quase 3 horas, segundo dados do Ibope Inteligência, divulgados pela Rede Nossa São Paulo em 2018. Questões históricas e sociais, entre elas a concentração da oferta de empregos nas regiões mais centrais, por exemplo, também impactam diretamente a qualidade dos serviços de mobilidade.

Além disso, os índices de mortalidade no trânsito são considerados um grave problema de saúde pública em todo o Brasil. Na capital paulista, apesar do número de óbitos estar abaixo da média nacional, persegue-se o objetivo de zero morte causada por acidentes viários.

Na Conversa Social deste mês, entrevistamos a arquiteta Elisabete França, Superintendente de Planejamento e Projetos da Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET-SP) e Professora de Arquitetura na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). Para ela, é preciso valorizar as experiências que apresentam resultados positivos em outras cidades, sem deixar de lado a complexidade e particularidades paulistanas.

A especialista destacou alguns pontos importantes para se pensar a mobilidade e seus principais desafios na capital paulista. Leia, abaixo, a entrevista na íntegra:

Fundação Volkswagen: A cidade de São Paulo (SP) possui o sistema de tráfego mais complexo do Brasil. Com base em sua experiência na Superintendência de Planejamento Urbano da CET-SP, quais são os maiores desafios do presente e do futuro para a mobilidade na capital paulista?

Elisabete França: Uma cidade com 12 milhões de habitantes e 6 milhões de carros é um grande desafio. Nesses tempos contemporâneos, onde várias pessoas passaram a usar outros modais que substituem o carro, o grande desafio é criar redes de conexão que facilitem ao cidadão a utilização dos vários modos que o permitam circular. Não é fácil, pois é uma mudança muito grande.

FVW: Atualmente, muito se tem discutido a respeito do transporte intermodal. Como esse modelo pode contribuir para facilitar os deslocamentos urbanos? Que boas práticas merecem destaque?

EF: O intermodal é a tônica do momento. Os gestores públicos estão todos imbuídos da missão de descobrir quais os melhores caminhos para incentivar a intermodalidade nas cidades. Para isso, precisamos ter uma mudança de cultura. Até os anos 2000, nossa cultura era rodoviarista, sem tanta atenção ao serviço público.

Agora, além de melhorar o serviço público, você tem que integrar o modal cicloviário, melhorar as calçadas para os pedestres (que são os que mais circulam) convencer algumas instituições a mudarem suas práticas, como a implementação de bicicletários no metrô, por exemplo. Os ônibus também precisam pensar em como ajudar quem usa bicicleta. Enfim, há uma série de desafios.

Para resolver tudo isso, precisamos conhecer outras experiências que já apresentaram bons resultados em outras cidades e em outros países. Não adianta usar a experiência de uma pequena cidade de 20 mil ou 100 mil habitantes. São Paulo tem 12 milhões de pessoas. Precisamos buscar cidades-irmãs. Nós temos feito muito isso, com intercâmbios. Há também instituições, como a Fundação Bloomberg, que apoiam muito nossos trabalhos. Com isso, procuramos experiências que temos certeza que já deram certo.

Aqui no Brasil, há cidades como Curitiba, onde o modal do transporte público funciona muito bem. O Rio de Janeiro implantou um veículo leve sobre trilhos (VLT), que tem dado resultados. Nós precisamos conhecer esse tipo de bons exemplos para as cidades.

FVW: O elevado número de acidentes viários com óbitos ainda é uma realidade brasileira, sobretudo entre os mais jovens. De que modo é possível reverter essa estatística?

EF: Recentemente, foi publicado um relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o problema das mortes no trânsito. Mundialmente, é um problema grave. Segundo este relatório, temos 1,3 milhão de pessoas que morrem em decorrência do trânsito. Já é o maior índice entre os jovens. No Brasil, nós temos esse problema, que é grave. São cerca de 20 mortes a cada 100 mil habitantes, o que não é um bom número.

Na cidade de São Paulo, ao contrário desse índice nacional elevado, são 6,5 óbitos por 100 mil habitantes. Nos últimos anos, a cidade baixou muito o número de mortes no trânsito.

Para tratarmos essa adversidade, que também oneram os serviços de saúde pública, nós temos que aprender com o que já foi feito e deu certo. São Paulo tem implantado vários programas, como o “Vida Segura”, nas avenidas que registram mais acidentes. Estamos finalizando 32 audiências públicas nas subprefeituras, apresentando esse projeto. Ele está baseado na “visão zero”, ou seja, nenhuma morte pode ser aceita. Essa ideia surgiu na Suíça e, aqui, foi desenvolvido um plano com início a partir de março de 2019, após o término das audiências públicas deste ano.

Há ainda outros passos que o governo precisa dar, como a apresentação na Câmara Municipal. A ideia é que, até março, a proposta já tenha se tornado lei. São coisas que atenuam as mortes.Também temos estudado muito sobre rotas escolares seguras. E a redução da velocidade nas avenidas: quanto mais baixo o limite, menor o número de mortes.

FVW: Como pensar soluções de mobilidade para os habitantes das regiões mais distantes dos centros urbanos, ou seja, das periferias? Podemos afirmar que mobilidade urbana e mobilidade social são fatores conectados?

EF: Com certeza, mobilidade urbana e mobilidade social estão vinculadas. Além das melhorias nos vários modais, como ciclovias, transporte público (seja ônibus, metrô ou na Companhia Paulista de Trens Metropolitanos – CPTM), os Planos Diretores também precisam pensar em como distribuir atividades. No mundo contemporâneo, em que o trabalhador e as formas de contratação estão mudando, além do uso de aplicativos, não precisamos concentrar todos os trabalhos nas regiões centrais.

É impressionante que a gente não tenha mudado isso ainda. Podemos ter polos nas Zonas Leste, Sul, Norte. Historicamente, essas regiões pedem isso: mais polos de trabalho. Com a facilidade que temos hoje, precisamos repensar essa questão. Não é necessário trazer todo mundo para o centro da cidade. E precisamos, também, levar os aparelhos culturais para os outros bairros.

FVW: Em termos de planejamento urbano, quais os desafios para a inclusão de pessoas com deficiência: do deslocamento ao uso e à apropriação dos espaços da cidade?

EF: Esse é um grande trabalho que deve ser feito atualmente. Embora haja uma legislação específica sobre isso, nem todas as cidades implantaram acessibilidade. E acessibilidade envolve as calçadas, acesso aos terminais de ônibus e metrô, que facilitem e permitam que as pessoas se desloquem pela cidade livremente. A prefeitura tem a Comissão Permanente de Calçadas, que estuda as principais rotas que permitem o acesso a, pelo menos, os transportes mais importantes.

A gente tem um problema na cidade de São Paulo, pois a calçada não é de responsabilidade do setor público. Principalmente nos bairros, quem faz a calçada é o morador que, no geral, não observa as normas de acessibilidade.

Essa é uma mudança que precisa ser implantada, principalmente na capital paulista. O poder público deve definir mais regras para que todos as cumpram para facilitar a vida dos que precisam, como cadeirantes e cegos, grupos que mais demandam melhorias na acessibilidade.

FVW: Como os diferentes setores da sociedade – público, privado e terceiro setor – podem contribuir para a mobilidade e o planejamento urbano?

EF: É muito importante a participação de setores da sociedade civil, principalmente os que se agrupam em entidades privadas. Chegamos a um ponto, no Brasil, em que sabemos que o Estado não consegue mais, na verdade nunca conseguiu, resolver todos os problemas que a sociedade tem. Problemas de grande dimensão.

As ciclovias, por exemplo, têm uma mobilização muito grande dos cicloativistas, que ajudam muito. Nós estamos trabalhando agora com workshops em que desenhamos quais redes devem se conectar na cidade para melhorar o sistema cicloviário. É fundamental a participação de todas as entidades dos cicloativistas. Dos pedestres também, que participam conosco na câmara técnica, dizendo ao poder público: “Tem que fazer isso”, “Tem que fazer aquilo”, “A prioridade é essa, não aquela”.

Além disso, a sociedade civil e as instituições privadas podem ajudar o setor público com programas de capacitação. O poder público não tem condições de realizá-las em todos os lugares. E existe uma série de alternativas mundo afora. Vemos pequenas organizações melhorando espaços públicos. Lugares em que há dificuldades para andar, problemas de violência, falta de iluminação. Estão arrumando praças, fazendo parcerias.

Outra questão envolve as rotas escolares. É importante, antes da implantação de uma rota escolar, haver a capacitação dos professores, dos pais. Parcerias com as organizações não governamentais também são essenciais. Essa participação ativa do civismo é o que tem mostrado bons resultados em outras cidades.

Confira os melhores momentos da entrevista no vídeo abaixo. A versão com audiodescrição está disponível no canal do YouTube.