O preconceito continua sendo um dos maiores obstáculos à mobilidade social de transexuais e travestis no Brasil. Segundo dados recentes da ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais, 90% dessas pessoas recorrem à prostituição como principal meio de sustento, devido a barreiras que impedem o acesso ao mercado de trabalho formal.
Além da discriminação das próprias famílias, esse processo de exclusão de direitos também envolve diretamente a escola. Ainda de acordo com a ANTRA, 82% das pessoas trans e travestis abandonam os estudos na educação básica. Cerca de 56% delas não terminam sequer o ensino fundamental, enquanto 72% das que prosseguem não concluem o ensino médio. Ao analisar os números do ensino superior, o dado é ainda mais alarmante: apenas 0,02% estão numa universidade.
A transfobia combinada ao despreparo da maioria das escolas e de seus profissionais faz com que as pessoas trans e travestis abandonem os estudos cedo e, consequentemente, tenham dificuldade em ingressar no mercado de trabalho e prosseguir com sua formação técnica e acadêmica.
Este retrato reflete barreiras profundas e um panorama difícil de romper: sem acesso à educação de qualidade e demais direitos básicos, fica mais complicado conseguir empregos formais e estáveis, renda e moradia dignas, acesso à saúde e segurança e, como consequência, mobilidade social positiva. Esse ciclo perverso perpetua desigualdades, tolhe sonhos, limita potenciais e torna o Brasil o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo.
Casa Neon Cunha
A atuação da Casa Neon Cunha é um retrato da realidade vivida pela maior parte da população trans do país. Sediada em São Bernardo do Campo, essa organização da sociedade civil abriga e acolhe a população LGBTQIAP+ em situação de extrema vulnerabilidade do ABC Paulista. Hoje, 16 pessoas moram no local, sendo a maioria travestis e transexuais, além daquelas que usam o espaço durante o dia. Quase todas trabalham como garotas de programa para sobreviver.
A Casa Neon Cunha ainda é um centro de cidadania. A entidade oferece assistência jurídica para retificação do nome, capacitação profissional, cesta básica, kits de higiene pessoal e refeições diárias, entre outras ações.
“Atendemos cerca de 30 pessoas diariamente, fora aquelas que moram na casa. São travestis e transexuais que vêm para tomar café da manhã, almoçar, lanchar, jantar ou ter acesso à higiene pessoal, porque na rua elas não têm isso. São pessoas que vivem em vulnerabilidade extrema”, ressalta Paulo Araújo, presidente da Casa Neon Cunha, cujo nome homenageia uma das maiores ativistas brasileiras da causa.
Paulo afirma que o mês da visibilidade trans é imprescindível para mostrar como esse público não tem acesso a direitos básicos nem oportunidades. “Ninguém quer privilégios. Elas, eles e iles só querem ser quem são. Querem ser livres, poder ter sonhos, correr atrás deles. Poder estudar, trabalhar, ir para onde quiserem, como qualquer pessoa. Esta é a luta. Ter direito a condições melhores de vida, de dignidade”, enfatiza.
Segundo Araújo, poucas travestis e transexuais conseguem ter um bom trabalho ou ocupar espaços que reverberam seu lugar de fala, como a cartunista Laerte ou a deputada federal Erika Hilton. “São pessoas extremamente qualificadas, intelectuais que dão o tom do discurso de uma população excluída. São vozes que ecoam, mas não bastam. A visibilidade e a mobilidade social têm que ser para todos”.
Parcerias
A Casa Neon Cunha vive hoje de emendas parlamentares e editais. Em 2024, ela foi uma das organizações selecionadas pela Fundação Grupo Volkswagen para receber apoio financeiro. Foi o segundo ano de parceria. O recurso foi destinado a um curso de Corte, Costura e Modelagem para 40 alunos LGBTQIAP+, com foco nas pessoas trans. As aulas terminaram no final do ano passado. De lá para cá, muitas formandas passaram a produzir e até vender vestidos, bolsas, blusas e outras peças, ganhando autoestima e uma nova perspectiva de vida.
“A Fundação é uma grande parceira nossa. Ela nos ajudou quando não tínhamos financiamento nenhum. Ajudou a retificar doze nomes sociais, o que não é barato, deu cestas básicas quando precisamos. É uma instituição com quem podemos contar, porque a mobilidade social e o acolhimento às minorias estão no seu propósito, no seu DNA”, revela Araújo.
Inclusão produtiva
Outra parceira da Fundação Grupo Volkswagen é o Instituto Diverse, uma associação que realiza consultoria multidisciplinar na área de promoção da cultura da diversidade e antidiscriminação para a própria Fundação e organizações sociais de base comunitária parceiras.
Sua presidente, Maria Letícia Munhoz, conhece muito bem o mundo corporativo e afirma que, hoje, travestis e transexuais só conseguem entrar no mercado de trabalho formal por meio de vagas afirmativas. Para ela, os critérios devem ser mudados e o preconceito combatido incessantemente.
“Sem as chamadas cotas, essas pessoas não passam nem na triagem. Muitas empresas têm medo de ser representadas por aquilo que não consideram ‘padrão’. Infelizmente, o preconceito e a ignorância ainda dominam esses espaços”, lamenta.
Letícia explica que a maioria das empresas limita os critérios de contratação à formação acadêmica, idiomas e experiências profissionais anteriores, por exemplo. Outras habilidades e qualidades valiosas não são testadas nem sequer consideradas. É o que acontece com a população trans.
Segundo Letícia, travestis e transexuais têm muito a contribuir em qualquer ramo profissional, inclusive nas mesas de negociação e decisão. “São pessoas mais tolerantes e resilientes.Sabem ouvir e argumentar em uma situação de conflito”.
Ela ainda afirma que, por terem vivido diferentes desafios na vida, empatia e criatividade são outros pontos fortes. “Elas têm um olhar para diagnosticar e criar produtos novos, trazer novidades. É uma característica desenvolvida por grupos que são excluídos. Enquanto os brancos e cisgênero costumam conhecer somente uma cultura, a população trans conhece outras. Então, tem habilidade para trazer múltiplos olhares”.
Oportunidades
Paulo Araújo concorda com Maria Letícia e acrescenta que a população trans é muito dedicada e esforçada, pois quer manter o emprego.
“Temos uma pessoa trans de 24 anos trabalhando na Casa Neon. É o primeiro emprego com carteira assinada dela. Ela ajuda na limpeza e limpa tão bem, faz com tanta alegria, que dá até gosto. Quer mostrar que é profissional, que entrega o serviço com qualidade. A gente percebe que ela está satisfeita, orgulhosa de estar aqui, e a gente fica satisfeito também pela qualidade do serviço. E é assim com a maioria dessa população. Quando elas têm uma oportunidade, agarram com todas as forças para fazer o melhor e prosperar”, testemunha ele.
Visibilidade
Para a presidente do Instituto Diverse, dar visibilidade à população trans e sua causa em todos os locais é importante para mostrar à sociedade que essas pessoas existem.
“Tem gente que critica um dia de visibilidade trans. Na verdade, todos os dias são importantes, mas temos que pensar que em todos os dias as pessoas trans são invisibilizadas”, alerta.
Tanto ela quanto Paulo concordam que hoje, pelo menos, veículos de comunicação, marcas e a sociedade em geral falam a respeito do assunto, um grande avanço se comparado há 10 anos. Mas ainda há muito por fazer.
“Há aqueles que falam que a luta das minorias é ‘mi-mi-mi’. Essa expressão é atentatória à democracia. É uma forma nada democrática de tentar silenciar a voz de um grupo social que democraticamente vem colocar no espaço público sua demanda política”, diz Letícia.
Araújo complementa, ressaltando que o mínimo de visibilidade só existe, atualmente, porque a população LGBTQIAP+ “comprou a briga” e está disposta a enfrentar tudo para ter equidade, dignidade e respeito.
Ajudando a transformar essa realidade
A mudança desse cenário exige ações concretas e colaborativas entre sociedade civil, empresas e terceiro setor, articuladas a políticas públicas. Projetos que promovem a qualificação profissional, aliados ao letramento e à oferta de oportunidades por parte das empresas, são essenciais para garantir não apenas a contratação, mas a verdadeira inclusão dessas pessoas no mercado formal. Além disso, iniciativas que ampliem o acesso e a permanência na educação básica e superior são fundamentais.
No caso das companhias, políticas internas que assegurem a equidade no processo seletivo e em toda a jornada da pessoa colaboradora são indispensáveis. E não se trata apenas de oferecer vagas ou capacitações, mas também de criar ambientes acolhedores e inclusivos. Conscientizar sobre respeito e empatia, mas também sobre direitos que vão desde o uso do banheiro do gênero com o qual a pessoa se identifica até a observância irrestrita do nome social, por exemplo, são muito importantes.
As organizações da sociedade civil desempenham um papel fundamental nesse processo, sobretudo quando recebem suporte financeiro e institucional para suas ações. Apoiar organizações sociais que atendem essa população e fortalecem redes de assistência e proteção social, como a Casa Neon Cunha, também fortalece a causa e a luta de transexuais e travestis. A Fundação Grupo Volkswagen, por exemplo, prioriza projetos que buscam transformar realidades e combater a exclusão, promovendo mais diversidade nos espaços de trabalho e de aprendizado.
Ações como essas combatem preconceitos e discriminações e ampliam as possibilidades de mobilidade social, gerando impactos positivos para toda a sociedade.
Você também pode dar seu apoio a essa causa compartilhando conteúdos de qualidade sobre diversidade, equidade e inclusão, combatendo a desinformação e o preconceito, valorizando empreendedores, artistas e ativistas trans e pressionando o poder público e as empresas a promover iniciativas para essa comunidade. A transformação social começa com a ação coletiva.
Guia para Letramento e Desenvolvimento de Políticas de Diversidade
Material desenvolvido pela Fundação Grupo Volkswagen em parceria com o Instituto Diverse, o guia tem como objetivo inspirar e capacitar equipes e indivíduos a promoverem ambientes mais inclusivos e democráticos. A publicação levanta reflexões necessárias, informações sintéticas e práticas orientativas, além de trazer um glossário de termos a serem utilizados nos diálogos sobre diversidade. Acesse o site da Fundação e faça o download gratuito.