Maria Ruanes cresceu em um barraco de dois cômodos, na periferia de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. É a caçula de seis irmãos. Sua mãe, empregada doméstica, e seu pai, açougueiro, batalhavam diariamente para sustentar a família, que vivia na extrema pobreza. Entre muitos primos, Maria foi a primeira a chegar ao ensino superior.
“Sou exceção porque ir para a faculdade nunca foi algo possível na realidade da minha família. Nós éramos muito pobres, muito mesmo”, reflete Maria. Aos 16 anos, fez cursinho para vestibular oferecido pela prefeitura da cidade. Ingressou na universidade pública graças a políticas de inclusão. Estudava à noite e trabalhava na prefeitura durante o dia. “A prefeitura oferecia trabalho para os jovens pobres que entravam na faculdade, uma espécie de estágio. O valor pago não era muito, mas dava para me manter e estudar. Sem essa ajuda não teria chegado aonde cheguei porque meus pais não podiam me bancar”, ressalta.
Maria se formou em Ciências Sociais na Universidade Federal Fluminense, e fez mestrado em Antropologia Social na Universidade Federal de São Carlos. Hoje, como analista de Responsabilidade Social da Fundação Grupo Volkswagen, trabalha para levar capacitação e oportunidades a outras pessoas que, assim como ela, nasceram na comunidade. “Políticas públicas fizeram de mim uma exceção no meio da exclusão”, afirma.
Hoje, Maria mora num apartamento no centro de São Paulo. Tem estabilidade financeira e uma vida que seus pais nunca sonharam em ter. Sua história mostra como a inclusão produtiva pode gerar transformação e promover mobilidade social.
O que é inclusão produtiva?
A especialista e superintendente da Fundação Arymax, Vivianne Naigebori, explica que a inclusão produtiva não se resume a ter um emprego, mas à chance de construir uma vida. É a inserção de pessoas no mercado de trabalho para que elas gerem renda e tenham seus direitos fundamentais assegurados, como moradia digna, segurança alimentar, acesso àsaúde, educação, cultura e lazer.
A precarização é um dos grandes problemas do mercado de trabalho no Brasil. Hoje, milhões de pessoas trabalham. Entretanto, seguem em situação de pobreza porque seus rendimentos não são suficientes para ter uma casa com o mínimo de estrutura, boa alimentação e nem tratamento em casos de doença.
Dados do IBGE mostram que 27,4% da população brasileira vive em situação de pobreza e 4,4% em extrema pobreza, ou seja, sobrevivem com cerca de R$ 209 por mês.
“Não é qualquer trabalho que promove inclusão. É preciso que seja uma ocupação com direitos garantidos e potencial de progressão. Se uma pessoa trabalha por longas jornadas e ainda assim não consegue pagar aluguel ou alimentar sua família, isso não é inclusão produtiva”, reforça Viviane.
Embora muitos atrelem a inclusão produtiva à capacitação profissional, Viviane alerta que a educação é apenas um dos passos para que isso aconteça. Estudos da Fundação Arymax apontam evidências de que, para garantir a inclusão produtiva a pessoas em situação de vulnerabilidade social, é preciso apoiar o indivíduo numa jornada completa: formação técnica, socioemocional, acompanhamento da trajetória profissional e, no caso do empreendedorismo, capital semente, mentoria e suporte na gestão financeira.
“Em geral, essas pessoas não têm as redes para acessar oportunidades de trabalho. Então, depois da formação é importante auxiliá-los nesse processo e acompanhar sua entrada no mercado de trabalho”.
Não é só isso. Vivianne enfatiza que é necessário sensibilizar as empresas que estão contratando para criar um ambiente de inclusão, que permita o acolhimento e a permanência desses profissionais. Após o início do trabalho, o ideal é monitorar o “assistido” por um ou dois anos antes de deixá-lo seguir conta própria.
“Parece um exagero ter que pegar na mão e acompanhar por meses ou anos até o indivíduo conseguir caminhar sozinho. Mas para essas pessoas que não tiveram uma base esse cuidado é essencial”, enfatiza Vivianne.
Fortalecimento dos territórios e mobilidade social
Além da educação e inserção no mercado de trabalho, há mais um item considerado primordial para que a inclusão produtiva aconteça e impulsione a mobilidade social: fortalecer as comunidades.
Segundo Maria, só é possível produzir uma vida boa para alguém se o território tiver tranquilidade, boa vivência, e as organizações locais estiverem engajadas. Por isso, a Fundação Grupo Volkswagen criou o Projeto Tração, que oferece capacitação, formação política e cidadã às entidades locais, para que se estruturem, criem seu estatuto e busquem investimentos para a região.
“Quando a gente provoca movimentos mínimos naqueles grupos que ficam na base da pirâmide, a gente já consegue mover uma estrutura. E ela precisa ser movida. Por isso, inclusão produtiva é pensar no desenvolvimento coletivo. Caso contrário, teremos para sempre um ciclo de exclusões com exceções”.
Maria usa como exemplo o Projeto Autonomia, que capacita jovens de 16 a 21 anos na região do Montanhão, periferia de São Bernardo do Campo (SP). O projeto é realizado em parceria com a Associação Padre Leo Comissari, que fica dentro da comunidade.
No início do curso, os adolescentes não sabiam que carreira seguir e não tinham muitas perspectivas em relação ao futuro. Quatro meses depois, saíram cheio de sonhos, contratados pela Volkswagen do Brasil e com um curso de dois anos no Senai na área de tecnologia da informática.
Maria conta que na formatura via pais chorando e ouvia os alunos dizerem que iam estudar e trabalhar para a comunidade e a família crescerem. “Eles entenderam que o crescimento deles também provoca impacto no próprio território, inclusive se tornando exemplo de que é possível trilhar um caminho diferente”.
A prova disso é clara. Na primeira turma, o Projeto Autonomia recebeu 200 inscrições para 32 vagas. Na segunda turma, mais de 300 inscrições em menos de 48 horas.
As barreiras do preconceito
Mesmo com capacitação e esforço, muitos profissionais enfrentam preconceitos no momento da contratação. Pessoas negras, mulheres, LGBTs, indígenas e moradores de periferias sofrem discriminação velada ou explícita.
Maria vivenciou isso de forma intensa. Travesti, ela só se assumiu após concluir o mestrado. “Se eu tivesse me assumido antes, acho que não teria conseguido chegar até aqui, porque com certeza teriam muito mais barreiras no caminho.”
Programas de diversidade nas empresas ajudam a combater esses desafios, mas ainda há um longo caminho a percorrer. “Quanto mais conscientes estivermos dos vieses no processo de contratação e quanto mais exemplares forem os processos seletivos, menos chance teremos de ver esses preconceitos impedirem jovens de entrarem no mundo do trabalho”, pontua Vivianne.
O que o Brasil precisa fazer para avançar?
O avanço da inclusão produtiva depende de muitos fatores: da educação, de uma economia pujante, da garantia de direitos associada ao trabalho e de um país em que as oportunidades de trabalho não estejam concentradas só em determinadas regiões. Sobretudo, depende de olhar para as vocações econômicas de cada território.
Inclusão produtiva não é uma solução para o país inteiro. Cada território tem uma realidade e, a partir dessa realidade é que os programas de inclusão devem ser criados. O Brasil é continente. Ele é urbano e rural. É ainda mais desafiador porque o mundo do trabalho vive profunda transformação, e muda de forma constante.
“Mas com uma economia em ascensão, com o investimento em educação e com o entendimento de a educação precisa se adequar à realidade do mundo do trabalho, existem caminhos muito promissores para promover a inclusão produtiva e, consequentemente, a mobilidade social”, acredita Vivianne.
Terceiro setor e iniciativa privada em prol da inclusão produtiva
Há boas notícias. Assim como a Fundação Grupo Volkswagen, Vivianne afirma que há diversas organizações pequenas, médias e grandes em todos os estados do Brasil se mobilizando para ampliar a inclusão produtiva no país.
Segundo ela, existem instituições trabalhando especificamente para criar ambientes de acolhimento e programas de diversidade. Outras fazem a ponte entre jovens e empresas com vagas abertas.
“Quando a gente lançou o nosso primeiro estudo, no final de 2019, o termo inclusão produtiva mal era ouvido. Ele se restringia a programas de governo. Hoje você tem dezenas de empresas que adotaram a inclusão produtiva, o termo inclusão produtiva. A gente tem várias instituições, fundações, que sempre trabalharam só a educação começando a fazer a conexão entre educação e mundo do trabalho. Então, com certeza o campo de inclusão produtiva avançou muito e a gente tem muitas evidências disso”, relata Vivianne.
O ganho é de todos
O diretor-geral da Fundação Grupo Volkswagen, Vitor Hugo Neia, afirma que a inclusão produtiva traz benefícios tanto para indivíduos quanto para a economia e a sociedade como um todo. Aqui estão alguns dos principais:
1. Redução da pobreza e desigualdade
- Garante acesso a oportunidades de trabalho e geração de renda para grupos vulneráveis.
- Diminui a dependência de programas assistenciais ao promover autonomia financeira.
2. Desenvolvimento econômico e local
- Estimula o empreendedorismo e a formalização de pequenos negócios.
- Impulsiona economias locais, especialmente em comunidades periféricas e rurais.
3. Maior qualificação e empregabilidade
- Oferece capacitação e formação profissional, melhorando a competitividade da mão de obra.
- Facilita a inserção de jovens e adultos no mercado de trabalho formal.
4. Valorização da economia solidária e do cooperativismo
- Fortalece iniciativas coletivas e cooperativas, promovendo autogestão e sustentabilidade.
- Incentiva o comércio justo e a produção local.
5. Promoção da igualdade de gênero e inclusão social
- Cria oportunidades para mulheres, pessoas com deficiência e grupos historicamente excluídos.
- Reduz barreiras ao ingresso no mercado de trabalho.
6. Aumento da arrecadação e sustentabilidade fiscal
- A formalização de trabalhadores e negócios amplia a base de arrecadação de impostos.
- Reduz os custos sociais com desemprego e marginalização.
“A inclusão produtiva, quando bem implementada, gera um ciclo virtuoso que melhora a qualidade de vida da população e impulsiona o crescimento sustentável do país. Este é o foco do nosso trabalho: levar renda e dignidade a quem mais precisa”, finaliza Vitor.