Falta de mobilidade social afeta acesso à saúde e tratamento rápido

No Dia Mundial do Câncer, estudo mostra que mais da metade dos brasileiros que morrem por causa da doença tem pouca escolaridade e é de baixa renda

Cerca de 55% dos falecimentos causados por câncer no Brasil ocorrem entre pessoas de menor escolaridade e renda, segundo estudo do Observatório de Atenção Primária da Umane, uma associação civil independente, sem fins lucrativos, voltada para a articulação e fomento de iniciativas de apoio ao desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (SUS). A pesquisa foi feita com base no último levantamento do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, divulgado em 2020. 

De acordo com o SIM, no ano de 2020, das 229.300 pessoas que foram a óbito por tumores malignos ou benignos no Brasil, 126.555 (55%) tinham até sete anos de escolaridade; 20% tinham estudado de oito a 11 anos e 9,2% tinham 12 ou mais anos de educação formal. A pesquisa aponta que a mortalidade é maior entre os que têm menor escolaridade e renda. 

Para a mastologista e ginecologista Tangely Freire, esses dados não são novidade. Segundo ela, as pessoas que moram nas periferias e em situação de vulnerabilidade social só procuram ajuda quando sentem dor ou o desconforto beira o intolerável.  

“Quando trabalhava no Hospital das Clínicas, as mulheres que chegavam até mim, vindas de várias cidades do Brasil, já apresentavam câncer em estágio mais avançado. Diferente de boa parte das pacientes que atendo na clínica, que são pessoas que fazem exames de rotina pelo plano de saúde. Com o check up periódico, fica mais fácil detectar qualquer doença no início e tratá-la com grandes chances de cura”, ressalta. 

Tangely é uma defensora do SUS e afirma que o sistema, de fato, salva vidas. Mas, por causa das longas filas de espera para atendimento, da precariedade das unidades básicas de saúde das regiões mais afastadas e da falta de conscientização da maioria da população, os diagnósticos e o início do tratamento demoram mais para acontecer.  

“No caso do câncer, a prevenção é fundamental. Mas nem todos os brasileiros têm ciência disso, apesar de toda a informação disponível. Vejo o poder público fazer campanhas nas ruas, ir até as comunidades levar vacinas, oferecer exames. Só que isso não basta, se a população não entender que é preciso cuidar da saúde para não adoecer. Tem que marcar consultas na UBS. Nesse sentido, a educação faz toda a diferença”, enfatiza.  

Diagnósticos precoces permitem tratamentos menos invasivos, reduzem custos para o sistema de saúde e, sobretudo, preservam a qualidade de vida dos pacientes. Esse é um direito que deveria ser assegurado a todos os usuários da saúde pública ou suplementar. Porém, isso não é a realidade. 

De acordo com o pediatra Carlos Amino, há um abismo entre a saúde oferecida aos mais ricos e aos mais pobres. “Tratamentos novos começam no setor privado e demoram anos para chegar ao SUS. O mesmo ocorre com os novos remédios, vacinas e tecnologias de ponta. Quem tem maior poder aquisitivo tem tratamento mais rápido, mais eficaz e, dependendo do local onde está sendo atendido, mais chances de sobrevivência”, explica. 

Amino lembra que o câncer não escolhe classe social. No entanto, as populações mais vulneráveis sofrem mais por outros fatores. “Os cânceres são múltiplos, mas têm uma relação muito próxima com a qualidade de vida, a alimentação, as condições de trabalho, educação, transporte, local onde se mora e estado emocional. Todas essas questões aproximam ou distanciam as pessoas de um cuidado efetivo em relação aos cânceres e outras doenças, de um modo geral”, diz. 


Atenção Primária à Saúde 


O câncer não é o único problema da população periférica. Um relatório divulgado pelo IEPS – Instituto de Estudos para Políticas de Saúde – mostra que 1 em cada 3 brasileiros não tem nenhum tipo de atendimento à saúde e nem acesso à Atenção Primária à Saúde (APS). O número representa 34% da população brasileira, sendo 33,4 milhões de pessoas que dependem exclusivamente do SUS. Segundo o documento, a maior parte da população desassistida está nas capitais.  
 
A Atenção Primária à Saúde é o primeiro nível prioritário do atendimento. Seu objetivo é: 

  • Promover a saúde 
  • Prevenir doenças 
  • Fazer diagnósticos 
  • Tratamento 
  • Reabilitação 
  • Cuidados paliativos 
  • Vigilância em saúde 

Esta é a principal porta de entrada do SUS e do centro de comunicação com toda a Rede de Atenção do sistema. Isso significa dizer que a APS funciona como um filtro capaz de organizar o fluxo dos serviços nas redes de saúde, dos mais simples aos mais complexos. 


Território 


A maior parte das pessoas sem acesso à Atenção Primária à Saúde vive em áreas rurais ou em regiões de conflito, onde tais serviços são mais escassos e as famílias moram longe das unidades de saúde. Outra parte se encontra nas comunidades urbanas, onde os sistemas de saúde muitas vezes são mal equipados e a acessibilidade é um desafio.  

Cidadãos de baixa renda têm mais dificuldade de se ausentar do trabalho e arcar com os custos necessários para chegar às unidades de saúde. A falta de médicos, enfermeiros, remédios, água e infraestrutura também impactam no atendimento dessas pessoas. 


Tratamento pela metade 


A faxineira Maria José Fernandes, de 64 anos, mora em Parelheiros, no extremo sul de São Paulo. Ela sofre de dores nas costas há mais de 10 anos, e até hoje não conseguiu finalizar o tratamento. Ela conta que passa no postinho perto de casa quando sente muita dor, mas nem sempre tem dinheiro para comprar todos os remédios.  

“Então, tem meses que escolho o que tomar. Compro só um ou dois medicamentos. Há um ano me mandaram fazer uns exames novos, mas lá na zona leste. É do outro lado da cidade. Pego dois ônibus e dois metrôs. São 3 horas e pouco para ir e mais 3 horas para voltar. Levo o dia inteiro e ainda gasto um dinheiro que não tenho de condução e para comer. Por causa disso, não fiz todos os exames ainda e só quando tiver tudo posso voltar ao ortopedista. Acho que não vou terminar de tratar as minhas dores nas costas nunca”, relata. 

Ela afirma que, enquanto ninguém constroi um hospital perto dela, “vai tomando uns comprimidos para enganar a dor e levar a vida”. “Meus avós viveram assim, meus pais, eu vivo assim, e meus filhos também. Quem sabe com meus netos seja diferente no futuro, né?”, acredita Maria José. 


Infância e adolescência 


A falta de atenção à saúde, principalmente na infância e adolescência, pode trazer impactos significativos no desenvolvimento e no desempenho escolar, tão importantes para garantir o acesso ao ensino superior e a empregabilidade no futuro. Também pode afetar a renda, já que pessoas adoecidas podem ter de se afastar de suas funções, impactando toda a família. Em movimentos de ascensão, a saúde mental também requer atenção. 


Mobilidade social a favor da saúde 


A mobilidade social é imprescindível para mudar esse cenário enfrentado pelas populações mais vulneráveis. A ascensão socioeconômica possibilitada por meio da educação e da inclusão produtiva fortalece a garantia de direitos básicos, como o acesso à saúde 

A Tese de Mobilidade Social, desenvolvida pela Fundação Grupo Volkswagen em parceria com a Artemísia, destaca que a mobilidade social é “um fenômeno relativamente novo na história da humanidade”, associado ao surgimento das sociedades modernas e industriais. Ela permite que indivíduos e famílias transitem entre diferentes classes sociais, criando uma perspectiva de ascensão econômica e melhores condições de vida. 

Com um emprego digno e maior renda, as famílias podem buscar mais serviços médicos, sejam eles públicos ou privados, e investir em prevenção. Elas também podem morar em lugares melhores, com saneamento básico e menos riscos de infecções e doenças, por exemplo. Além disso, têm acesso a alimentos de melhor qualidade. 


Educação como ferramenta de transformação 


A educação é um pilar fundamental para a mobilidade social e tem impacto direto na saúde. Famílias mais instruídas têm maior conhecimento sobre práticas de autocuidado, prevenção de doenças e os serviços disponíveis. A alfabetização em saúde – a capacidade de compreender informações para tomar decisões conscientes – também contribui para o fortalecimento da autonomia e da qualidade de vida. 
 
A Fundação Grupo Volkswagen é um exemplo de como o fortalecimento da mobilidade social pode contribuir para construir redes de apoio baseadas na educação, no desenvolvimento econômico e na conscientização. Com iniciativas que capacitam organizações da sociedade civil e priorizam projetos voltados à inclusão de populações historicamente discriminadas, pode-se reduzir as barreiras para o acesso à saúde de forma sustentável e transformar fragilidades em possibilidades de futuro. 

Assim, a mobilidade social não apenas atenua a falta de acesso à saúde, mas também ajuda a construir uma rede mais inclusiva e plural, na qual cada indivíduo tem a possibilidade de viver com dignidade e bem-estar.