Segundo Maria Teresa Égler Mantoan, pedagoga e docente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), “a inclusão é uma ideia poderosa e desafiadora, assumida por quem tem o compromisso de disseminar, em um mundo povoado e habituado a modelos e diferenciações excludentes, a garantia do direito à diferença, na igualdade de direitos”. No Brasil, Liliane Garcez é uma dessas vozes comprometidas em fazer valer, na prática, o direito de todos à educação de qualidade, inclusiva e equitativa.
Gerente de Programas do Instituto Rodrigo Mendes – organização sem fins lucrativos voltada à promoção da inclusão das pessoas com deficiência na escola comum –, Liliane é a primeira entrevistada de 2019 da Conversa Social da Fundação Volkswagen. Durante o bate-papo, que ocorreu na sede do Instituto em São Paulo (SP), ela refletiu sobre os principais avanços no campo da educação inclusiva nos últimos anos, com destaque para a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pela Organização das Nações Unidas em 2006, e a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, lançada pelo Ministério da Educação do Brasil em 2008.
Porém, ainda há muito a ser feito e a implantação da nova Base Nacional Comum Curricular é um dos caminhos para garantir que os currículos, planos de aula e escolas de todo o Brasil sejam, de fato, inclusivos. Além disso, a inclusão ultrapassa o direito à educação. Para assegurar a participação e o exercício pleno da cidadania, a mobilidade urbana e a mobilidade social – causas também apoiadas pela Fundação Volkswagen – são, por exemplo, igualmente fundamentais. Afinal, como afirmou Liliane Garcez, “não existe pensar em direito se você não está lá”.
Leia, abaixo, a entrevista na íntegra:
Fundação Volkswagen: No Brasil, a causa da inclusão de pessoas com deficiência vem ganhando força nos últimos anos. Porém, ainda há muitos desafios, especialmente na educação. Quais conquistas recentes merecem ser comemoradas e quais as perspectivas para 2019?
Liliane Garcez: Podemos dizer que o Brasil é pioneiro em educação inclusiva. Depois da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 2006, nós elaboramos a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Nela, nos obrigamos a cumprir o que está disposto na Convenção em termos de educação, principalmente em relação ao público-alvo da educação especial.
Ao longo dos últimos 10 anos, tivemos um aumento significativo no acesso dos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento – que agora denominamos Transtorno do Espectro Autista (TEA) –, altas habilidades e superdotação nas redes comuns de ensino. Isso é uma virada cultural, uma mudança expressiva em termos de organização de nosso sistema, porque essa parcela do alunado sempre teve uma educação “segregada”, nas escolas e salas especiais. Eram exceções aquelas crianças e adolescentes que conseguiam estar nas salas comuns do ensino regular.
Hoje, sabemos que não é assim. A curva se inverteu: temos mais crianças e jovens desse público na sala regular, pois houve um investimento muito grande. A gente pode comemorar, por exemplo, a existência do chamado duplo Fundeb, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação. Cada aluno da educação especial tem direito a dois aportes do Fundo: um para a escolarização e outro para o atendimento educacional especializado. Isso é uma vitória muito grande, pois municípios e Estados não tinham como pagar o atendimento junto com a escolarização.
Outra conquista é o fato de que o atendimento educacional especializado prioritariamente acontece nas escolas. Nas escolas privadas ele ainda é restrito, mas nas públicas está muito difundido e, em geral, ocorre nas salas de recursos multifuncionais. Isso estava posto desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), mas, entre 2008 e 2018, o número dessas salas cresceu muito, dando a oportunidade de ampliarmos a convivência dos alunos com e sem deficiência nos mesmos ambientes e com acesso ao mesmo currículo. Isso não é pouca coisa!
Para 2019, temos a Base Nacional Comum Curricular recentemente aprovada, tanto para a Educação Infantil quanto para os Ensinos Fundamental e Médio. A questão da educação inclusiva não está claramente exposta, porém há muitas possibilidades de introduzir, nas competências gerais da BNCC, os preceitos de uma educação de qualidade e inclusiva ao longo do currículo. Estados e municípios estão fazendo suas propostas curriculares. Os próximos passos serão organizar os planos de aula e realizar a formação dos professores. É uma oportunidade ímpar de continuarmos essa mudança de cultura, não deixando ninguém para trás nem de fora. É para isso que o Instituto Rodrigo Mendes trabalha.
FVW: Ainda sobre a Base Nacional Comum Curricular, o Ministério da Educação homologou a versão para o Ensino Médio em dezembro de 2018. No ano anterior, a BNCC para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental já havia sido publicada pelo MEC. Como a inclusão é tratada na Base?
LG: A proposta da BNCC é que todos os estudantes brasileiros recebam o mesmo currículo, ou seja, tenham acesso ao mesmo tipo de conhecimento, sem distinção. Isso tem tudo a ver com a perspectiva da inclusão. A educação inclusiva é aquela que trabalha para proporcionar participação plena a todos. Nesse sentido, a própria existência da Base Nacional Comum Curricular diz respeito à preocupação de que os brasileiros, do Acre ao Rio Grande do Sul, tenham acesso aos mesmos conteúdos, guardadas as particularidades e singularidades dos territórios.
Embora o texto da BNCC não aborde em cada ponto as questões específicas da educação especial, podemos livremente – a partir da formação de professores e de articulações com diferentes propostas – nos organizarmos para que o currículo chegue, de fato, aos meninos e meninas matriculados em nossas escolas. É um passo importante e que é possível de se dar no Brasil. Temos antecedentes, parâmetros e diretrizes nacionais. Agora, a BNCC também vem com o intuito de se articular com o ODS 4 (Objetivo de Desenvolvimento Sustentável) da ONU, que trata da educação equitativa, inclusiva e de qualidade. Então, estamos alinhados com o que há de mais atual internacionalmente. O País vai bem na organização de sua legislação e normativas. Colocar em prática é o grande desafio e quem faz isso são os professores.
O Instituto Rodrigo Mendes, em parceria com a Fundação Lemann e o Movimento pela Base Nacional Comum, organizou um guia de “boas perguntas”. O objetivo é fazer os educadores refletirem sobre os currículos e planos de aula, por meio de questões do tipo: “Será que determinada estratégia pedagógica deixa alguém de fora?”. Esse tipo de articulação é muito artesanal. Às vezes, estar na BNCC facilita, pois induz o educador a pensar sobre o tema, mas isso não é suficiente. Com esse material, buscamos incentivá-los a olhar para os sujeitos da sala de aula, a pensar sobre as modificações que têm de ser feitas no cotidiano. Dessa forma, a Base não será vista somente como um documento, mas servirá para desconstruir a noção de que as crianças com deficiência, TEA ou altas habilidades e superdotação são “café com leite”, ou seja, de que para elas vale um conhecimento reduzido ou adaptado. As adequações e flexibilizações curriculares a partir da Base têm de ser pensadas como ganhos para todas as crianças, com e sem deficiência.
FVW: Em janeiro de 2019, a Organização das Nações Unidas celebrou o 1º Dia Mundial do Braille. A iniciativa busca valorizar a linguagem como meio de promoção de liberdades fundamentais. Podemos falar de direitos humanos sem pensar em inclusão?
LG: A educação não pode nunca ser desvinculada dos direitos humanos. Essa ideia de direito é o que mobiliza a elaboração de políticas públicas. Quando a gente pensa em educação, não conseguimos separá-la da noção de que ela tem de ser para todos; é, portanto, um direito.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos também postula, desde 1948, que a educação é um direito. Porém, ao olharmos para as pessoas com deficiência ao longo de boa parte desse tempo, isso não acontecia de fato. Direito não é um conceito, uma simples teoria. Ele tem de acontecer na prática para que realmente seja um direito. Foi somente com a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 2006, promulgada quase 60 anos depois da Declaração, que tivemos essa visão assegurada.
Então, ao percebermos que ainda precisamos criar uma Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência para afirmar que a educação é um direito e que também vale para elas, notamos o quanto ainda falta para tornar essa questão efetiva. E aí vêm as políticas públicas. O Brasil está muito bem na elaboração dessas políticas e também no investimento.
Essa pergunta é um gancho interessante para a gente pensar na reformulação e atualização da política nacional de direitos humanos, ideia que circula desde o ano passado. Isso pode ser feito. Porém, a educação é um direito de todos e não podemos ter retrocessos. Podemos, sim, reformular a política; afinal, 10 anos depois, precisamos reavaliá-la, analisá-la, ver seus pontos favoráveis e o que pode ser melhorado. Porém, nunca podemos abandonar a ideia de direitos para todos.
Tenho convicção de que o Brasil não vai abrir mão de boa parcela de sua população em termos do direito à educação. E, no que depender do Instituto Rodrigo Mendes, continuaremos trabalhando nessa perspectiva, para não deixar que esse direito seja flexibilizado em busca de alternativas que não estejam vinculadas à ideia de direitos humanos.
FVW: Além da educação, o Brasil necessita avançar em diversas outras frentes, entre elas a mobilidade urbana e social das pessoas com deficiência. Qual a contribuição do terceiro setor para alavancar essas causas?
LG: Muita gente acha que só a educação tem de ser inclusiva e que, assim, resolvemos nossa dívida histórica em relação às pessoas com deficiência. Isso não é verdade. Talvez o principal eixo da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência seja a ideia de acessibilidade. O que são acessibilidade e participação senão mobilidade urbana e social? Quando pensamos em inclusão, estamos pensando em pertencimento. E, para uma pessoa pertencer a determinado território e a determinado contexto, ela precisa participar e, para participar, ela precisa ter acesso. Então, a mobilidade é essencial.
Não existe pensar em direito se você não está lá. Boa parte dos avanços na educação e na escola aconteceu porque esses meninos e meninas começaram a ser matriculados. No DIVERSA Presencial, projeto do Instituto Rodrigo Mendes apoiado pela Fundação Volkswagen, a gente pede aos educadores que tragam relatos de situações desafiadoras, envolvendo alunos e alunas com deficiência, TEA e altas habilidades e superdotação. Essas situações movimentam o pensamento das pessoas e permitem que revejam seus preconceitos, atitudes e vivências. Esse processo, que acontece ao vivo e em cores no DIVERSA Presencial ao longo de dez encontros, é o que queremos para a sociedade como um todo.
Só pensamos na ideia de mobilidade urbana quando somos impedidos de transitar. Na verdade, o direito surge para que a gente pare de cometer determinadas atrocidades e elimine barreiras que a gente mesmo constrói. Essa ideia é muito forte e potente para o advocacy das pessoas com deficiência. Costumamos definir pessoas com deficiência como aquelas que têm impedimentos de longo prazo e que, na interação com diferentes barreiras, são impedidas de participar. O que é isso senão mobilidade?
A mobilidade urbana, numa cidade como São Paulo, é crucial. Você não tem participação se não tiver isso garantido. Em relação à mobilidade social, ela perpassa um eixo muito claro para a educação, que é a redução das desigualdades. É importante termos em foco o fato de que somos um país desigual. Muitas vezes, os números e estatísticas mascaram a desigualdade interna de determinadas cidades. A gente sempre tem escolas de excelência, mas também temos aquelas em que as crianças não recebem o mínimo. E há também muitas crianças, boa parte delas com deficiência, fora da escola. Essa é, por exemplo, a grande batalha do Unicef, um dos nossos parceiros.
Então, qual o papel do terceiro setor? Antigamente, achávamos que o terceiro setor era aquele que atuava apenas nas lacunas do Estado. Acho que estamos mudando essa perspectiva e avançando um pouco nisso. Na minha opinião, ele tem de estar não somente onde o Estado não alcança, mas também ser parceiro do Estado. As políticas públicas não podem ser feitas só pelos governos. Essa mudança faz com que a gente saia de uma ideia assistencialista, de uma organização que vai chegar a lugares aonde nenhuma política pública chega. Não é verdade. Muitas vezes, a organização está lá justamente para alertar que o Estado também precisa chegar, atuando junto com ele. O terceiro setor, os governos e a própria população não têm de escolher onde participar. Temos que começar a fazer redes de apoio potentes e que consigam minimizar as desigualdades e eliminar as barreiras que ainda existem.
Para finalizar, gostaria de chamar a atenção para a grande barreira que as pessoas com deficiência sentem quando vão a um restaurante, a uma escola, a um hospital ou a qualquer outra instituição social: a barreira atitudinal. Fomos forjados a pensar que a pessoa com deficiência é aquela a quem falta alguma coisa e que, por isso, ela precisa que a completem. Hoje não pensamos mais assim. Se tem alguma coisa faltando, é na sociedade, nas cidades. Então, investir na mobilidade social, na mobilidade urbana, no acesso à escola, ao lazer, ao esporte, enfim, no acesso à vida e à participação plena faz parte dessa revitalização do papel do terceiro setor.
Confira os melhores momentos da entrevista no vídeo abaixo. A versão com audiodescrição está disponível no canal do YouTube.